Aconteceu na 1ª edição


Medicina Personalizada é caminho promissor, mas ainda distante do sistema público de saúde

Fórum sobre o tema, realizado pelo Instituto Lado a Lado Pela Vida, reuniu especialistas e poder público para discutir os avanços e desafios deste novo cenário

 

“Quantas pessoas eu preciso tratar para beneficiar uma?”. A questão levantada pelo oncologista Marcelo Cruz na abertura do I Fórum Nacional sobre Medicina Personalizada, realizado ontem em Brasília, define o que é hoje o modelo de assistência praticado no Brasil, a medicina de imprecisão. Como consequência, desperdícios com diagnósticos equivocados ou aplicação de medicamentos inadequados são hoje grandes gargalos do Sistema Público de Saúde. Para se ter uma ideia, reações adversas aos medicamentos são a quarta causa de internações, respondem por 197 mil óbitos e têm um custo de 79 milhões de euros.

Um dos caminhos abertos para a aplicação de tratamentos mais eficazes é o da Medicina Personalizada, já considerada um divisor de águas no âmbito da saúde em todo mundo. Este foi o tema central do evento realizado pelo Instituto Lado a Lado Pela Vida, que reuniu especialistas de diversas áreas para discutir os avanços e desafios deste cenário novo e promissor.

Além de profissionais da saúde, o Fórum contou com a presença de representantes do poder público, como a Senadora Ana Amélia Lemos (PP-RS),  que recentemente recebeu o Prêmio Octavio Frias de Oliveira pelo seu trabalho de assistência aos pacientes com câncer, o Deputado Alexandre Serfiotis (PMDB-RJ), o Presidente da Comissão de Seguridade Social e Família, Hiran Gonçalves, a Subsecretária de Assistência Integral à Saúde, Dra. Érica Batista de Queiroz, e Daniel Zanetti Scherrer, do Departamento de Gestão e Incorporação de Tecnologias em Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, representando o ministro Ricardo Barros (PP-PR).

Diante de um auditório cheio, a senadora Ana Amélia destacou a importância de eventos como este para transpor o que chamou de ‘labirinto’ que um paciente de câncer precisa percorrer hoje para saber de seus direitos. “Não existe outra forma de promover mudanças se não coletivamente. E é essa a missão que temos aqui hoje”, declarou. A senadora é uma das autoras do projeto de lei PLS 200, que acelera a liberação de pesquisas clínicas no Brasil.

O desafio para garantir que avanços promovidos pela Medicina Personalizada cheguem a todos também foi destacado na fala do Deputado Alexandre Serfiotis. Ele, que sofreu recentemente uma perda familiar por conta de um câncer, ressaltou o aumento da incidência da doença e a lacuna que existe entre os sistemas público e privado de saúde quando se fala em tratamento oncológico. “A medicina personalizada traz um avanço muito grande para a oncologia. Trazer à tona esse tipo de discussão é fundamental para garantir que em um futuro próximo os pacientes tenham acesso a um tratamento direcionado e individualizado, e possam ter uma sobrevida de qualidade”, afirmou.

Um remédio para todos versus Medicina Personalizada

“A medicina personalizada é a evolução da medicina atual, não só no tratamento, mas na prevenção e detecção precoce”, afirmou o Dr. Marcelo Cruz. Na oncologia, representa uma importante quebra de paradigma, que abandona a abordagem “one-size-fits-all” – medicina “tamanho único” – e inaugura um modelo individualizado, que busca tratamentos customizados e adequados para cada paciente, através das novas tecnologias e estudos genéticos.

A eficácia desta abordagem personalizada, apesar de ser recente na prática médica, fora descrita ainda nos primórdios da medicina. Hipócrates, considerado por muitos ‘pai da medicina’, afirmava que “é mais importante saber que tipo de pessoa a doença tem do que saber que tipo de doença a pessoa tem”.

Em 2003, quando o sequenciamento genômico foi então concluído, após 14 anos de pesquisas, o custo para realizar o teste era de aproximadamente 100 milhões de dólares. Dez anos depois, testes genéticos já eram feitos com custo de 3 a 5 mil dólares. Para Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), essa revolução só é possível graças à rápida evolução das tecnologia de informação. “Os avanços são grandes, mas ainda é uma revolução em início”, ponderou. “Temos que aprender a trabalhar com toda essa informação disponível”, concluiu.

Segundo a oncologista Carolina Kawamura, a dificuldade para saber o que fazer com a informação que o teste genético oferece ainda é um grande desafio mesmo no sistema privado. “Essas informações disponíveis podem mudar a história natural da doença, tempo de sobrevida e efeitos colaterais dos tratamentos.” A escassez de patologistas no país, por exemplo, é um dos complicadores que limitam o aproveitamento da Medicina Personalizada na prática médica.                       

“Não existe Medicina Personalizada sem equipe multidisciplinar”, reforçou a coordenadora do Departamento de Anatomia Patológica do Hospital Sírio Libanês, Renata Coudry. “Patologistas radiologistas, oncologistas devem discutir em conjunto como atuar no tratamento daquele tumor”. Para ela, a telemedicina, processo avançado de análise de resultados de exames e diagnósticos de forma digital, pode ser um dos caminhos para suprir a falta de profissionais da área.

Além da telemedicina, a ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Martha Regina de Oliveira, ressaltou alguns pontos imprescindíveis para aproximar essa nova abordagem à realidade da Saúde no Brasil, como a implantação de prontuários eletrônicos, o compartilhamento de informações entre profissionais de saúde e informação de qualidade e orientada ao paciente.

Identificar, definir e predizer

Assim como os exames de imagem se tornaram padrão na medicina, a tendência é que a oncologia genômica também se torne o modelo principal em alguns anos. O desafio, no entanto, reside no acesso. “Como oferecer para toda a população os mesmos avanços e os mesmos tratamentos disponíveis no sistema privado?”, questionou a farmacêutica bioquímica Lídia Freire Abdalla durante o debate.

Garantir “tudo a todos” é um dos principais dilemas do Sistema Único de Saúde. A Medicina Personalizada surge como um dos caminhos para contornar essa questão. Identificando as características individuais da doença e levando-se em conta que nem todo paciente reage a um tratamento da mesma forma é possível selecionar as terapias mais indicadas para cada pessoa.

Segundo o oncologista Fernando Sabino, uma das grandes dificuldades é a disponibilidade de profissionais que podem fazer essa seleção, através da indicação de testes genéticos, além do custo. Para ele, a Medicina Personalizada “ainda é um futuro bem distante da maioria da população”.

Marcelo Cruz enxerga o cenário com mais otimismo. “A Medicina Personalizada que parece estar longe do SUS e mais perto do sistema privado pode ser comparada com o que aconteceu com o tratamento do HIV quando surgiu”.  Em 1986, quando o então Ministro da Saúde Roberto Santos criou o Programa Nacional de DST e Aids, o preço da medicação era exorbitante, no entanto a eficácia justificou sua incorporação. Em tese, o custo-efetividade dos tratamentos da medicina personalizada também justificaria sua disponibilização nos sistemas de saúde.

Os avanços no tratamento do câncer

A Medicina Personalizada introduziu uma nova estratégia para ‘atacar’ o câncer. Através das drogas alvo-moleculares, imunoterapias, terapias-alvo e terapias gênicas os medicamentos passaram a atuar localmente. As vantagens são tratamentos mais eficazes mesmo para tumores em estadio avançado, menor toxicidade, efeitos colaterais mínimos, maiores chances de cura e sobrevida com qualidade.

Um dos cânceres mais agressivos, o tumor de ovário, tem apresentado significativo aumento de sobrevida com tratamentos direcionados, muitas vezes sem cirurgia. Segundo o oncologista João Paulo Lima, “investigando-se o DNA do tumor, a história familiar e outros problemas que as pacientes apresentam é possível classificá-las em diferentes grupos e indicar o melhor tratamento”. “A Medicina Personalizada tem permitido a muitas mulheres diagnosticadas com câncer de ovário levar uma vida normal, com a doença ‘quieta’”, afirmou.

Além do câncer de ovário, o melanoma e os tumores de próstata e pulmão também tiveram avanços no tratamento. Para o oncologista do Hospital do Câncer de Barretos “pesquisar as mutações de um tumor e ter acesso a medicações específicas faz toda a diferença no resultado do tratamento”. Ele lembrou que, infelizmente, o tratamento disponível hoje no SUS para o tratamento de câncer de pulmão é o mesmo que se oferecia em 2002.

Já para o câncer de próstata, seja a doença inicial ou metastática, o tratamento padrão hoje, de acordo com o oncologista Igor Morbeck, é a terapia alvo-específica. No entanto, ainda há desproporção entre as abordagens aplicadas em diferentes pacientes. “É importante saber identificar melhor os casos que devem ser somente observados e os que devem ser tratados. Essa desproporção acaba resultando em pacientes com efeitos colaterais que poderiam ter sido evitados e outros que pecaram pela falta de tratamento”, afirmou o urologista Lucas Nogueira.

Medicina Personalizada e Políticas Públicas

As dificuldades e burocratização do sistema para a incorporação de novas tecnologias de Saúde foram tema do último debate do Fórum. Na mesa, o presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Gustavo dos Santos Fernandes, o vice-presidente da Academia Nacional de Farmácia, Lauro Moretto, a diretora de Inovação e Responsabilidade Social da Interfarma, Maria José Delgado Fagundes, o ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto e Daniel Zaneti, da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos, discutiram os caminhos para lidar com essas barreiras.

A falta de recursos foi apontada por todos como principal impedimento. Para o Dr. Gustavo Fernandes, é preciso elencar prioridades e incorporar novas tecnologias de forma lenta, mas racional. O presidente da SBOC também defende que o sistema de saúde no Brasil não seja apenas comprador dessas tecnologias, mas passe a fazer parte de todo o ciclo de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos, que promoveria também avanços econômicos.

A ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Martha Regina de Oliveira, também expôs a necessidade de se definir claramente o conceito do custo-efetividade e levar em consideração a desigualdade na utilização de tecnologias de saúde e as diferenças regionais brasileiras.

Os trâmites burocráticos para submeter medicamentos e procedimentos à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) também foi alvo de críticas dos especialistas. Hoje, além da consulta pública, essas demandas passam por avaliações internas que prolongam o processo.

A educação da população para a participação mais ativa nas consultas públicas foi outra necessidade apontada pela mesa. Em agosto, o Instituto Lado a Lado Pela Vida realizou uma campanha para estimular a contribuição na consulta pública da ANS, que regula a incorporação de procedimentos no rol dos planos de saúde. Mesmo no sistema privado, a participação ainda é pequena. Dos 47 milhões de beneficiários dos planos de saúde no Brasil, apenas 7.340 contribuíram na revisão anterior.

 

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